Hiperflexão - um posicionamento
Por Tulio Balestreri Nunes
Recebi um e-mail do Cel Torres convidando-me a participar de um grupo de discussão sobre equitação, e havia no e-mail os
comentários de pessoas do grupo sobre o "Centauro", elogiando o fato de colocar em discussão novos autores, como Philippe
Karl, e o site Sustainable Dressage, um de meus
favoritos. Também havia o comentário de que um site que trazia este conteúdo também mostrava, em sua página inicial, a
performance de Edward Gal, com Totilas, na sua primeira quebra de recorde de pontuação da reprise livre. Ficou, para alguns, a
dúvida de qual o posicionamento do site a respeito de hiperflexão. Bom, para os que não acompanham o site desde o início
(ainda não completamos 3 meses), gostaria de dizer que a seção "Performances Clássicas" começou com Reiner Klimke/Ahlerich, na
apresentação que rendeu o ouro olímpico nas Olimpíadas de 1984. Gostaria de dizer, ainda, que, embora eu tenha meu ponto de
vista, que apresentarei neste artigo, o site não tem um posicionamento sobre o assunto. O site quer mostrar, explicar e
discutir todas as técnicas de treinamento, todas as opiniões são bem vindas, não espero que todos concordem comigo. Já dizia
Nélson Rodrigues, "toda a unanimidade é burra".
Recentemente, a FEI pronunciou-se sobre "hiperflexão", "rollkur" e "low, deep and round" (LDR). No último dia 9 de fevereiro,
uma mesa redonda decidiu que fica tudo como está, ou, conforme a decisão tomada:
- "Qualquer posição de pescoço ou cabeça obtida através de força excessiva não é aceitável".
- "Hiperflexão/rollkur, que é a flexão do pescoço obtida através de força excessiva, não é aceitável".
- "O método conhecido como Low, Deep & Round (LDR), que obtém a flexão do pescoço sem o uso de força excessiva é
permitido".
Ou seja, conseguiram encontrar diferença entre duas coisas que são iguais. Como provar que não há o emprego de força excessiva
em alguém que está trabalhando seu cavalo com o queixo encostado no peito, muitas vezes longas sessões de mais de uma hora?
Como provar que há? Quem define isso? Vão colocar sensores nas rédeas? Estabelecer uma força aceitável (acima de tantos
Newtons de tração na rédea o cavaleiro estará desclassificado)?
Muita gente já se pronunciou sobre o assunto, e há opiniões fundamentalistas pelos dois lados.
Vamos ver um pouco do que dizem os defensores de ambas as teorias.
Só conheço um livro que defende o LDR (chamo aqui desta maneira pois é assim que se referem seus defensores). Trata-se de
"Ride Horses with Awareness and Feel", de Tineke e Joep Bartels. For a isso, apenas algumas entrevistas com Sjef Janssen
(marido e treinador de Anky von Grunsven) ou algum de seus alunos.
Os Bartels não resumem seu método à hiperflexão do pescoço, consideram isso apenas uma parte dele. Chamam de método de
"perguntas e respostas", e tratam de "remover as resistências". E as premissas que utilizam para justificar a hiperflexão do
pescoço, em sua maioria, não se sustentam.
Consideram que seu método segue os princípios da "equitação clássica", porém com uma "abordagem diferente".
O método de perguntas e respostas possui quatro etapas: ação (por favor, faça), pressão (faça agora), reação (resposta) e
recompensa (muito obrigado). Propõe-se a criar uma comunicação entre cavaleiro e cavalo de forma que este último vá em busca
da recompensa, contrastando com o conceito de "faça ou apanhe".
Ora, isso é subestimar a inteligência dos leitores. Embora esse conceito das quatro etapas seja muito interessante, não quer
dizer que quem não segue o método Bartels só tente chegar a seus objetivos através da punição.
Isso é apenas um senão. O método é o mais natural possível, e nada que não possa ser aplicado sem o uso de hiperflexão.
Mesmo no capítulo "a ciência por trás do método Deep & Round", nada de novidades no início da narrativa. Começa afirmando que
a maneira de desenvolver a musculatura abdominal é a variação entre posição "para baixo e para a frente" (long & low) e uma
postura mais elevada. Isso provoca a elevação das costas, o engajamento dos posteriores e facilita a oscilação da coluna
vertebral (swing), que torna mais fácil para o cavaleiro "entrar" no movimento do cavalo. Perfeito. É isso mesmo.
Minha contrariedade com o texto começa quando afirmam que "um projeto de pesquisa foi desenvolvido sobre os efeitos do
treinamento na posição deep & round ... foi mostrado claramente que este método de treinamento permite obter movimentos mais
elásticos".
Ainda, "...este método de treinamento contribui para que os cavalos de esporte não apenas obtenham melhores resultados, mas
também previne lesões, e até mesmo pode curar cavalos com problemas. Na medicina humana, é sabido que a terapia para
problemas nas costas passa pelo fortalecimento dos músculos das costas e do abdomem".
Ora, também a extensão do pescoço para a frente e para baixo (long & low) provoca a elevação da base do pescoço, a contração
dos abdominais, o alongamento da linha superior do cavalo (top line) e a elevação das costas. Porém, neste caso, o peso ainda
está sobre os anteriores. Pode-se, numa etapa seguinte, manter o arquemento das costas e a elevação da base do pescoço, com o
alongamento da linha superior, mesmo quando o cavalo passa para uma postura mais "alta", isso mantendo o engajamento dos
posteriores. Com a "atitude elástica e sustentada da extremidade anterior do cavalo, com a nuca como o ponto mais alto" (o
ramener, como se referiam os mestres franceses), conseguimos a transferência do peso para os posteriores, e obtemos, também,
tudo aquilo preconizado pelos defensores do LDR (elevação, arqueamento e oscilação das costas, fortalecimento dos músculos
abdominais e alongamento da linha superior). O que realmente importa é a projeção do pescoço, com o endireitamento da curva
inferior do "S" cervical.
Eu também gostaria de saber com que base científica afirmam que permite obter movimentos mais elásticos, que previne lesões e
até mesmo as curam. Duas características comuns dos cavalos top de adestramento da atualidade são o fato de serem "big movers"
e haver grande consanguinidade no seu pedigree.
Estes cavalos teriam amplos movimentos de qualquer maneira, os tais movimentos mais elásticos que se referem, na verdade, são
efeitos colaterais (e, se não são negativos, pelo menos não são clássicos - perda de ritmo) causados pela hiperflexão do
pescoço, o que provoca uma hipertrofia da musculatura bráquio-cefálica, responsável por movimentos acentuados do
ante-mão. Por isso, vemos aquele trote em que os anteriores chegam à posição horizontal, sem o devido acompanhamento dos
posteriores. Sem contar a disassociação das diagonais, com os posteriores tocando o solo, e dele saindo, antes dos
anteriores. Outro fato que muitas vezes passa despercebido ao espectador menos atento é a transição passage-piaffe e
piaffe-passage. Os cavalos trabalhados em hiperflexão exibem tais transições de maneira suave, aparentemente espetaculares. Na
verdade, são espetaculosas. O que ocorre é que tais cavalos não fazem a transferência de peso para os posteriores com a
elevação do pescoço, como preconizavam os clássicos. Como o peso continua sobre os anteriores, e a elevação destes é obtida
pela hipertrofia dos músculos bráquio-cefálicos, não há a necessidade da tranferência de peso para a frente na transição do
piaffe para a passage, como ocorre nos cavalos treinados classicamente, que são obrigados a "sentarem" mais sobre os
posteriores para executar um piaffe bem feito. O encurtamento das bases nos cavalos treinados em hiperflexão ocorre pelo recuo
dos anteriores para baixo da massa, não mais pousando no chão na posição vertical, e sim inclinados para trás. Nas grandes
escolas clássicas, como Viena e Saumur, isso é uma evasão do movimento conhecida como triangularização. Acontece que nessas
escolas o piaffe não é um fim, mas um degrau para obter a levade. Então, sem a transferência de peso para os posteriores, o
movimento não atinge seus objetivos. Como nas competições não existem os ares altos, e o piaffe assim realizado não é
penalizado pelos juízes, o problema não existe.
Um outro efeito colateral da hiperflexão é a lateralização do passo. Porém, não é uma exclusividade da hiperflexão. Todo
cavalo que trabalha muito tempo em uma pista ao passo reunido adquire a tendência a lateralizar o passo, grave defeito, muito
difícil de ser corrigido. Esse é o motivo pelo qual, nas nossas reprises brasileiras, o passo reunido só aparecer na série
Forte I.
Ainda outro "pilar" da narrativa dos Bartels, a auto-sustentação (self carriage), não se confirma. Auto-sustentação pressupõe
o cavalo totalmente descontraído, elástico, sem pesar na mão do cavaleiro. Ora, se a cabeça está atrás da vertical, uma de
duas coisas acontece. Ou o cavaleiro está sustentando o peso da cabeça na sua mão (se não houver nenhuma força para trazer a
cabeça para trás da vertical ela permaneceria na vertical , por efeito da lei da gravidade), ou é a contração dos músculos
bráquio-cefálicos que faz o serviço (isso é que causa a hipertrofia de tais músculos).
Quanto a prevenir lesões, isso é muito contraditório. Pelo contrário, há várias pesquisas que apontam o método como
responsável por lesões irreversíveis. Cito como exemplo o brilhante livro "Tug of War", do veterinário alemão Gerd Heushman
(O Dedo na Ferida, na edição brasileira a ser lançada). Porém, há exceções. Bonfire foi campeão olímpico aos 18 anos, e Gigolo
também teve uma vida hípica longeva. Também a égua Hunter Douglas Sunrise, que neste final de semana obteve a terceira
colocação na 25ª. Edição da Copa do Mundo de Adestramento está chegando aos 16 anos. Será que as lesões sérias que aparecem
não são resultado da fragilidade provocada pela consangüinidade dos cruzamentos ?
Assim como não estou convencido que a hiperflexão provoca lesões, também não estou convencido que não as provoca. E abusos,
como o ocorrido com a língua roxa de Scandic, ano passado, podem ocorrer com qualquer método mal executado (a FEI também aqui
preferiu ignorar).
Sei, há também o aspecto do abuso psicológico, como a restrição do campo de visão. E ainda os "levantes" de alguns cavalos,
como o próprio Totilas, ou seu pai, Gribaldi. Ou Satchmo, nos Jogos Olímpicos de 2008. Mas conheço cavalos que também se
rebelam sem nunca terem sido trabalhados em hiperflexão.
Minha maior desconformidade com o método é que o resultado não é aquilo que apregoa o regulamento. O regulamento de
adestramento da FEI continua tratando os movimentos conforme foram descritos pelos clássicos, e muitas diferenças vemos no que
ali está escrito e o que é valorizado nas competições de alto nível nos dias de hoje. Se o que vale é o show, por que não
modificar o regulamento?
Se a FEI quiser banir o rollkur, não precisa olhar para o aspecto veterinário, pelo menos no adestramento. Basta que os juízes
penalizem bastante a nuca não ser o ponto mais alto, o movimento espetaculoso dos anteriores no trote, não condizente com a
movimentação dos posteriores, e a pouca transferência do peso para o post-mão nos movimentos que exigem maior reunião. É só
seguir o regulamento. O que não dá grau, não é utilizado.
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